Alta Gestão, Processos e o Resgate de Qualidade como Disciplina Corporativa
De Vendas a Operações, o papel estratégico da alta gestão na Qualidade
No final dos anos 1990, quando comecei a trabalhar com qualidade de software, “Qualidade” não era sinônimo de teste. Na verdade, teste era quase um coadjuvante na conversa sobre QA. O grande palco era ocupado por melhoria de processo. Modelos como o CMM (depois CMMI) ditavam o tom: a qualidade percebida de um produto ou serviço estava diretamente ligada à qualidade do processo que o gerou.
Nesse cenário, falar em qualidade era, antes de tudo, falar em engajamento da alta gestão: sem patrocínio executivo, nenhuma iniciativa de melhoria de processo tinha chance real de prosperar. Era a liderança quem abria portas, destravava recursos e, sobretudo, definia a cultura que guiava as decisões técnicas.
Corta para 2025.
Hoje, a percepção dominante no mercado é que qualidade de software significa “teste” (e teste, muitas vezes, é visto como uma atividade isolada, executada por um profissional específico, no final do ciclo). A visão processual se fragmentou, e a participação da alta gestão raramente é mencionada quando o assunto é QA.
O resultado? Projetos que já nascem tortos.
Quando a qualidade não começa no topo
Em muitas empresas, a alta gestão que define orçamentos, prazos e prioridades não entende o papel da qualidade como disciplina transversal. Ela é percebida como um “serviço” que o time de QA vai prestar lá na frente, com foco quase exclusivo em detectar defeitos (não em evitar que eles aconteçam). Esse enquadramento limitado tem dois efeitos imediatos:
Processos frágeis desde o início: se qualidade não está presente no desenho do processo, os times partem de um ponto de desequilíbrio.
Custos invisíveis: o retrabalho, a escalada de defeitos e a perda de previsibilidade viram despesas operacionais “normais”, e não sintomas de um processo deficiente.
Sem uma visão de qualidade como melhoria contínua de processos, a cultura de “vamos ajustando no caminho” se instala, e cada ciclo de desenvolvimento vira um ato de malabarismo para equilibrar débito técnico, expectativa de entrega e bugs de produção.
Por que resgatar qualidade como disciplina processual
Resgatar a visão de QA como disciplina processual não é nostalgia, é estratégia de sobrevivência corporativa.
Isso significa voltar a enxergar qualidade como:
Prática corporativa, não apenas técnica: envolvendo compras, pré-vendas, operações, RH e todas as áreas que influenciam a entrega de valor.
Investimento de cima para baixo: se a alta gestão compreende e compra a ideia, o investimento em melhoria de processo se espalha mais rápido e com mais consistência.
Cultura de prevenção: agir antes, não apenas corrigir depois.
Quando a liderança está engajada, surgem perguntas estratégicas que raramente aparecem no dia a dia dos times:
“Como estamos medindo a eficácia do nosso processo de desenvolvimento?”
“Qual o impacto financeiro do retrabalho gerado por falhas processuais?”
“Que práticas poderiam reduzir o custo de cada defeito antes que ele ocorra?”
O efeito cascata da consciência executiva
A conscientização da alta gestão sobre qualidade tem um efeito cascata:
ela muda o briefing dos projetos, influencia a escolha de tecnologias, melhora a definição de requisitos e, principalmente, eleva o nível de maturidade do processo desde o primeiro dia.
Isso não elimina a necessidade de testes, muito pelo contrário. Mas garante que eles aconteçam num ambiente mais previsível, onde cada prática de verificação está alinhada a um processo robusto.
Como escreveu Fred Brooks: não há solução mágica para os problemas essenciais do desenvolvimento de software. Mas há decisões estruturais que aumentam radicalmente nossas chances de sucesso. E uma delas é óbvia: começar a conversa sobre qualidade na sala onde as decisões estratégicas são tomadas.
Se queremos evitar que os projetos continuem nascendo tortos, precisamos trazer a alta gestão de volta para a mesa do QA; não para falar apenas de bugs, mas para discutir processos, maturidade e cultura.
Porque qualidade não é só teste, e nunca foi.