Você já reparou no que virou a maioria das salas VIP de aeroportos?
Originalmente criadas para oferecer exclusividade, conforto e foco, muitas delas se tornaram ambientes lotados, barulhentos e confusos. Por quê?
Porque os critérios de entrada foram alterados. Com cartões diversos, status temporários e promoções pontuais, a “exclusividade” foi cedendo espaço ao volume.
O resultado? Um espaço que deveria destacar o essencial — virou mais uma fila disfarçada de privilégio.
Agora pare e pense:
O seu backlog é uma sala VIP ou uma fila prioritária?
A importância do backlog como sistema de fluxo
Na perspectiva do Pensamento Lean e do Sistema Kanban, um backlog não deve ser visto como uma lista estática, mas como um fluxo de trabalho do tipo push, que deve ser cuidadosamente alimentado, priorizado e esvaziado.
De acordo com Donald Reinertsen (The Principles of Product Development Flow), filas mal gerenciadas em sistemas de trabalho aumentam o tempo de ciclo, reduzem a visibilidade, incentivam decisões baseadas em medo (do esquecimento) e comprometem a entrega de valor.
Na engenharia de processos, o acúmulo de trabalho não validado gera waste (desperdício), prejudica o throughput e cria variabilidade nociva ao sistema.
O que seria uma "fila prioritária" na agilidade?
Ao contrário da “sala VIP”, uma fila prioritária representa um sistema puxado (pull-based system), onde as demandas fluem com base em capacidade real, valor esperado e critérios explícitos de decisão.
Para ilustrar isso, pense em um hospital — mais especificamente, em uma sala de emergência.
Ninguém é atendido por ordem de chegada, mas por gravidade clínica. Uma pessoa com parada cardíaca entra na frente de quem está com febre há três dias.
Isso não é descaso — é priorização baseada em risco, urgência e impacto.
Na agilidade, podemos tentar traduzir o processo de priorização de uma sala de emergência (sem comparar com o valor de uma vida huamana, obviamente) ao sistema de classes de serviço:
Expedite: parada cardíaca
Fixed Date: agendamento de cirurgia
Standard: exames e tratamentos regulares
Intangible: revisão preventiva, check-up
O hospital, assim como um sistema ágil bem gerido, não tenta atender todos ao mesmo tempo, nem aceita qualquer novo paciente sem capacidade ou critério. Ele organiza a capacidade do fluxo com base em valor e impacto, usando protocolos, triagem e especialistas.
É um sistema que puxa demandas de forma responsável, de acordo com sua capacidade de atendimento e com o que realmente importa naquele momento.
Na gestão ágil, o conceito é o mesmo. Uma fila prioritária bem estruturada deve:
Impedir que “qualquer coisa entre” apenas porque foi dita por alguém influente
Ser abastecida de forma consciente, por cadências e decisões colaborativas (replenishment)
Limitar o trabalho em progresso (WIP) para proteger a capacidade de entrega
Classificar o que entra por urgência, risco, valor e esforço estimado
Segundo o Kanban Maturity Model (KMM), esse tipo de comportamento começa a se consolidar a partir do nível de maturidade 2 (confiabilidade inicial), e se refina no nível 3 (serviço gerenciado), quando a organização já consegue entregar com previsibilidade, balancear capacidade e demanda, e tomar decisões baseadas em evidência e prioridade, não em pressão ou opinião.
Portanto, uma fila prioritária não é onde as ideias esperam sua vez passivamente, mas um sistema onde decisões são tomadas continuamente, com base em critérios explícitos, capacidade real e impacto visível.
Em agilidade, como na medicina, não tratar tudo com a mesma prioridade é o que salva o sistema de colapsar.
Fonte: https://andresuman.com/pt/classes-de-servico-no-kanban/
Critérios de entrada e priorização: o que diz a literatura
A literatura ágil e de produto nos oferece diferentes lentes para avaliação e priorização de backlog. Dentre elas:
Cost of Delay (Reinertsen): valor perdido ao atrasar a entrega
User Value Scoring (Spotify): valor percebido pelo usuário final
WSJF (SAFe): Weighted Shortest Job First — relação entre valor e esforço
Kano Model: diferenciação entre encantadores, obrigatórios e indiferentes
Entre outras tantas. Avalie seu contexto, crie sua metodologia a partir dos muitos métodos. Ou seja, faça a logia (lógica) necessária se envolver com a cultura do seu time, projeto, empresa.
Aplicar esses critérios evita-se que o backlog se torne um “museu de intenções” e permite que o produto evolua com foco estratégico, sustentabilidade e aprendizado contínuo.
5 bons hábitos para manter um backlog estratégico
Limite o WIP do backlog refinado
Se tudo está “pronto para desenvolver”, algo está errado. Backlogs eficazes têm camadas: raw, refinados, prioritários.
Defina critérios claros de entrada (DoR upstream)
Evite aceitar qualquer item sem objetivo claro, hipótese de valor, público-alvo e definição de sucesso.
Implemente cadências de triagem (Replenishment Meetings)
Discuta novas entradas de forma colaborativa, com uma visão sistêmica, não individual.
Trate backlog como sistema de decisão, não de armazenamento
Um backlog bom deve ser constantemente priorizado, simplificado e validado, não inflado.
Use métricas para avaliar qualidade do backlog
Aging dos itens, taxa de descarte, % de retrabalho e tempo médio de refinamento são indicadores valiosos.
Quem deve priorizar?
A responsabilidade de alimentar e priorizar o backlog não é (nem deve ser) isolada.
Segundo Marty Cagan, o time de produto de alta performance opera com empoderamento coletivo, reunindo:
Product Owner / Product Manager: detentor da estratégia de produto
UX / Research: tradutores da jornada do usuário
Tech Lead / Engenharia: visão de esforço, impacto e viabilidade
Stakeholders-chave: visão de negócio e metas organizacionais
A construção de um backlog coeso depende de alinhamento multidisciplinar contínuo, não de decisões isoladas em planilhas.
Um backlog bem gerido não é aquele que tem mais ideias, mas o que possui menos lixo e mais clareza.
Na prática, isso significa investir mais energia em dizer “não agora” do que em anotar tudo “só por via das dúvidas”.
Seu backlog é uma sala VIP lotada por falta de critérios — ou uma fila estratégica que flui com valor e propósito?